Acabei de ver uma decisão judicial cuja fundamentação gerou minha discordância (não que isso interesse a alguém, claro) e resolvi escrever o presente texto.
Um homem ingressou com uma ação judicial contra o INSS requerendo uma indenização e, querendo ‘garantir o seu lado’, resolveu procurar um profissional religioso (a notícia não fala que tipo de profissional é) para ‘fazer trabalhos’ para que a ação judicial contra o INSS fosse vencida; pagou R$ 10 mil pelos serviços.
Ele de fato venceu a ação judicial contra o INSS, mas a indenização ficou aquém da esperada: ele recebeu indenização cujo valor foi similar ao gasto com o profissional religioso. E, insatisfeito, resolveu processar o profissional religioso.
Na sentença judicial o magistrado que presidiu o caso decidiu que:
“Vistos e etc. XXXXXXXXXXXXX ajuizou ação de COBRANÇA em face de XXXXXXXXXXXXX, alegando que pagou dez mil reais ao réu para que fizesse serviços espirituais a fim de conseguir valores em atrasos em uma ação judicial em face do INSS. Porém, o resultado obtido ficou aquém do esperado, pois a indenização recebida foi quase de mesmo valor dos trabalhos. Pediu a devolução dos valores, mas o réu recusou, o que a motivou a ingressar com a presente ação, para reaver o dinheiro. Juntou documentos às fls. 06/18. Em audiência, não houve conciliação (fls. 27). O réu contestou a ação alegando ilegitimidade ativa e o sucesso nos trabalhos espirituais para obtenção da indenização, e a ocorrência de discordância da ré, porque em outros trabalhos não obteve o sucesso almejado. Afirmou que os valores cobrados eram destinados à aquisição de objetos para os serviços, que foram prestados sem garantia de resultado final. Juntou documentos às fls. 33/48. Durante a instrução, foram duas testemunhas (fls. 57/61) e as partes reiteraram seus dizeres anteriores. É o relatório.Dessa decisão cabe recurso.
Fundamento e decido.
Preliminar. O réu é parte legítima porque há documentos demonstrando que recebeu o dinheiro, o que mostra ser ele o responsável por eventual devolução. A ação é improcedente. O contrato discutido nos autos é tipicamente de meio, inclusive com amparo constitucional. É notório que os serviços religiosos não tem comprovação científica de eficiência, pois não são feitos conforme as regras da ciência, mas sim de acordo com a crença da pessoa. Por este motivo, não se pode exigir a ocorrência do resultado, porque isto significaria uma intromissão indevida na religião pessoal, o que é proibido pela Constituição Federal, que garante a liberdade de expressão religiosa. Sob este ponto de vista, a possibilidade de se obter o pedido nestes serviços espirituais fica submetida à crença da pessoa, e dizer que é impossível demonstra um desrespeito com a religião de outrem. Além deste aspecto do resultado, ficou demonstrado nos autos que o réu realizou os serviços, cumprindo sua obrigação de meio de interceder junto ao sobrenatural, o que basta do ponto de vista legal, para não se caracterizar eventual ilícito. Portanto, havendo a realização do serviço religioso, o réu cumpriu com sua obrigação e o resultado fica restrito à fé da autora, a qual não pode ser questionada.
Diante do exposto, e do mais que dos autos consta, JULGO IMPROCEDENTE A AÇÃO. Devido à sucumbência, condeno a autora ao pagamento das custas e despesas processuais, e honorários advocatícios, que fixo por eqüidade, com base no art. 20, §4º, CPC, em R$ 700,00, devido à complexidade jurídica do processo, observando-se a Justiça Gratuita. P.R.I. Bragança Paulista, 06 de março de 2012″(Fonte: Conjur)
Vou analisar ponto a ponto a decisão, para o fim de explicar minha discordância:
a) Da obrigação de meio: o Conjur (fonte dessa notícia) comparou a obrigação do profissional religioso com a do médico. Ambos exerceriam atividade de obrigações de meio. Obrigações de meio são aquelas em que o profissional não tem obrigação legal de garantir o resultado, pois a equação, que levará ao resultado, contém muitas incógnitas que não são controladas pelo profissional.
No exemplo do médico, o resultado da intervenção dele depende não só da intervenção que ele faz, mas do organismo da pessoa e de inúmeros outras coisas que, por não serem controladas pelo médico, desobrigam o resultado. Assim, existem profissionais que ainda que usem métodos científicos, são desobrigados a garantir o resultado.
Já o profissional religioso réu da ação, de fato, não usa meios científico; no meu entender seria perninente que o magistrado tivesse auferido que ele havia deixado claro ao seu cliente esse fator (não adequação de seus procedimentos aos meios científicos).
Outro ponto interessante que foi aduzido na contestação mas o magistrado nem chegou a anotar na decisão, foi a garantia do resultado.
É que ainda que o profissional exerça atividade de meio, se ele prometer o resultado, fica obrigado a garantí-lo. Mas já vou falar mais sobre isso a seguir:
b) Relação de consumo: entendo que há clara relação de consumo entre o contratador do serviço (o autor da ação) e o profissional religioso (réu); é que sendo esse último um profissional autônomo e oferencendo ele um serviço e intervenção divina, ele está sim fornecendo um serviço.
E em relações de consumo há a inversão da prova em favor do consumidor. No caso especificado, como o consumidor poderia provar que o réu NÃO garantiu o resultado? Como ele poderia provar que o réu comprometeu-se SOMENTE a empreender todas as ações possíveis, sem, no entanto, garantir o resultado?
É sabido que isso se chama ‘prova diabólica‘, daí que o ônus fica a encargo daquele que melhor tem condições de produzí-la (que é o réu, profissional religioso). Incumbia a ele trazer aos autos ou o contrato ou prova testemunhal que provasse que ele NÃO prometeu o resultado.
Extrapolando para fins exemplificativos, imagine que um religioso qualquer prometa a alguém a cura do câncer (e isso, infelizmente, é sim comum) e a pessoa, incauta, creia nisso e gaste rios de dinheiro. Será lícito depois o religioso alegar que não prometeu a tal cura? A inexistência de contrato se interpreta de modo favorável ao consumidor do serviço, de maneira que a inexistência de um contrato provando que não foi prometido o resultado, se interpreta de modo favorável ao consumidor. E ainda que existisse um contrato, veja o que diz o Código de Defesa do Consumidor:
“Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:Vou contar uma história verídica: um homem chamado Luciano, foi aconselhado por um pastor, a vender seu carro e entregar o produto da venda à Igreja, pois fazendo isso sua vida ia melhorar. Ele o fez e quando a vida não melhorou, ele ingressou com uma ação contra a Igreja. Veja o que os desembargadores decidiram:
I – impossibilitem, exonerem ou atenuem a responsabilidade do fornecedor por vícios de qualquer natureza dos produtos e serviços ou impliquem renúncia ou disposição de direitos. Nas relações de consumo entre o fornecedor e o consumidor pessoa jurídica, a indenização poderá ser limitada, em situações justificáveis”
“…O autor se apresentava, na época dos fatos, com dezenove anos e a exercer funções de motorista. Disse que já sofria algum tipo de influência por parte da Igreja (fls 50), por meio de programas televisivos que assistia. Não seria possível se por em dúvida, dentro desse quadro em que se apresentava ele, por conseguinte, como pessoa de fácil cooptação, por meio de palavras e a atos praticados por auto-intitulados pastores da Igreja, que o teriam induzido à prática de doação de numerário, com a promessa de que sua vida tomaria outro rumo, a partir dali. Não era de se pôr em dúvida também o argumento segundo o qual o pastor o aconselhara a vender o veiculo e a fazer um sacrifício, ou seja, entregar o produto da venda para a Igreja. Sabido, pela experiência comum e por presunção que atitudes como as retratadas nos autos acabam efetivamente por ocorrer e a prova colhida deu boa conta disso. O aconselhamento, da forma como se verificou, a repetir o que, como é público e notório se pode ouvir pela televisão, acabou por induzir o apelante, que vinha a sofrer algum tipo de influência, a praticar ato por ele efetivamente não desejado. Não seria aquela a conduta a se esperar por parte de alguém que se denomina pastor, senão apenas mera orientação espintual. Pregação por desfazimento de patrimônio em troca de concessão multiplicada de bens materiais pela Providência pode estimular ao desdobramento no trabalho mas não garante que a promessa ou previsão venha a ocorrer.Como afirmado, João Fernandes confirmou sua presença, juntamente com o autor, na Igreja, ali o pastor reconheceu o recebimento dos cheques e devolveu um deles para o autor, no valor de R$ 600,00, que pendia de decurso de prazo para apresentação ManoelO ponto essencial nesse julgado foi a promessa efetuada pelo pastor. Na medida em que se constatou que ele prometeu que a vida do autor iria melhorar, ele acabou por induzir o autor a errado. É exatamente por isso que discordei da sentença objeto da postagem: porque não houve análise da questão argüida (promessa de resultado) que teria o condão de modificar toda a interpretação que se daria à causa.
(fls. 92) afirmou também ter acompanhado Luciano na ida à Igreja e que um homem restituiu a ele um cheque Luciano lhe disse que, ao fazer a doação, acreditava que seus problemas todos seriam resolvidos…” (Apelação Cível n° 252 381-4/6, da Comarca de General Salgado, em que figura como apelante LUCIANO RODRIGO SPADACIO e como apelada IGREJA UNIVERSAL DO REINO DE DEUS’ – Quarta Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo)
Por fim, perceba que o que anotei: não discordei da sentença (também acho que deveria ter sido improcedente), mas sim da fundamentação, que, repito, na minha opinião deveria ter analisado a questão ‘do resultado’ e não a liberdade de crença. É que o autor entrou com a ação porque o ‘resultado tinha sido aquém do esperado‘ e não porque o ‘resultado tinha sido aquém do prometido‘.
Se houvesse uma lei que regulamentasse essas atividades religiosas (ou incluísse, no CDC tais contratos, como já existe em outro país) exigindo, a formação de contratos claros e específicos, tudo seria melhor. Todavia, a bancada religiosa de nosso congresso jamais aprovaria uma tal lei, por ser contrária aos seus interesses.
http://subjudice.net/category/direito-civil/processual-civil/
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