Excelente voto
STJ – REsp nº 646.259 – RS – 4ª Turma – Rel. Min. Luis Felipe Salomão – DJ 24.08.2010
VOTO–VENCIDO - O EXMO. SR. MINISTRO HONILDO AMARAL DE MELLO CASTRO (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ⁄AP):
Sr. Ministro Presidente, pedi vistas dos autos para melhor análise da matéria, notadamente pelo posicionamento do em. Ministro Luis Felipe Salomão que, a despeito da incontroversa União Estável reconhecida nos autos e a idade do convivente falecido ser superior a sessenta (60) anos, assegurou “a companheira a meação dos bens adquiridos durante a união estável, desde que comprovado, em ação própria, o esforço comum”.
A divergência é parcial, e consiste na interpretação do artigo 258, II, do CCB⁄16 (equivalente ao art. 1.641 do Código Civil Brasileiro).
A vexata quaestio cinge–se em saber se a regra do art. 1.641, do CCB⁄02 (art. 258, II, do CCB⁄16) tem plena vigência assim como redigida. As indagações são:
(a) a norma aplica–se para as relações familiares do casamento e para a união estável?;
(b) estaria essa norma submetida a outros contornos para beneficiar em maior extensão a união estável do que ao casamento?;
(c) a vontade manifestada pelo casal ao estabelecer o vínculo pode ser modificada unilateralmente em prejuízo dos descendentes?
Penso que não.
Explico.
Permissa vênia, entendo aplicável a norma na sua inteireza, sem flexibilização, seja no casamento ou na união estável.
Em verdade, buscando dar efetividade ao art. 226, §3º da CF⁄88, que para proteção do Estado reconheceu a união estável entre homem e mulher como entidade familiar, sobrevieram a Lei n. 8.971⁄94 disciplinando direitos do companheiro a alimentos e à sucessão, bem como a Lei n. 9.278⁄96 que objetivou regulamentar o parágrafo terceiro daquela norma constitucional.
Essas leis, ressalta–se, antecedem à vigência do atual Código Civil de 2002, bem como são posteriores ao Código Civil de 1916.
Assevera a doutrina que “… o novo CCB encampou as questões disciplinadas nas leis referidas, que deixaram de existir, com exceção do direito real de habitação assegurado no parágrafo único do art. 7º da Lei n. 9.278⁄96” (cfr. Milton Paulo de Carvalho Filho, in Código Civil Comentado, coordenado pelo Ministro César Peluso, 4ª edição, Editora Manole, comentário ao art. 1723, p. 1979).
Com efeito, o art. 1.641, II, do vigente Código Civil, expressamente consignou que,litteris:
“ART. 1641– É OBRIGATÓRIO O REGIME DA SEPARAÇÃO DE BENS DO CASAMENTO:
I OMISSIS;
II DA PESSOA MAIOR DE SESSENTA ANOS.”
A MENS LEGIS, ensejadora das legislações constitucional e infraconstitucional há de se compreendida e interpretada em dois momentos, que vejo como fundamentais, para a sociedade brasileira na evolução dos conceitos de família, nos ajustes aos novos tempos e, também, quanto a proteção de resguardar, em tese, o nubente, maior de sessenta anos, “de uma união fugaz e exclusivamente interesseira” (Milton Paulo de Carvalho Filho, ob. cit. p. 1641).
Vejamos:
1º) A NORMA CONSTITUCIONAL
Ao criar o direito fundamental assegurado no art. 226, da CF⁄88, não se estabeleceu um princípio absoluto, senão uma nova realidade social que não se dissocia de outros princípios gerais de direito, razão pela o em. Ministro Gilmar Mendespreleciona que “a limitação dos direitos fundamentais é um tema central da dogmática (dos direitos fundamentais) e, muito provavelmente, do direito constitucional”, asseverando, ainda que “e indispensável que o estudo dos direitos fundamentais e de suas limitações não perca de vista sua estrutura dogmática”. (Cfr. Curso de Direito Constitucional, Editora Saraiva, 2009, p. 328).
Não se deve negar a proteção buscada no reconhecimento da União Estável do homem e da mulher como entidade familiar.
Contudo, essa proteção depende de uma interpretação sistemática, abrangente de outros direitos e disposições constitucionais (Min. Gilmar Mendes, ob. cit.), e, por isso mesmo, muitas vezes, a definição do âmbito, do limite dessa proteção, somente há de ser obtida em confronto com eventual restrição a esse direito. Na espécie, o direito à herança é, igualmente, princípio constitucional – art. 5º, inc. XXX, CF –, motivo pelo qual levou o eminente Ministro a prelecionar, litteris:
“não obstante, com o propósito de lograr uma sistematização, pode–se afirmar que a definição do âmbito de proteção exige a análise da norma constitucional garantidora de direitos, tendo em vista:
a) a identificação dos bens jurídicos protegidos e a amplitude dessa proteção (âmbito de proteção da norma);
b) a verificação de possíveis restrições contempladas expressamente, na Constituição (expressa restrição constitucional) e identificação das reservas legais de índole restritiva“.
Destarte, embora o reconhecimento da entidade familiar elevada ao cânone de direito constitucional, o disciplinamento de sua abrangência há de estar configurado nas leis infraconstitucionais que não são absolutas, mas se interagem e se harmonizam em seus vários aspectos e ou situações ocorrentes.
O art. 226 da CF⁄88 insere um conceito jurídico indeterminado.
Vejo nessa norma de conceito jurídico indeterminado a possibilidade de se limitar ou restringir seu campo de incidência, ou, sob outro ângulo, a possibilidade de sua regulamentação a outros princípios de direito, conforme preleciona o Min. Gilmar Mendes:
“assinale–se, pois, que a norma constitucional que submete determinados direitos à reserva de lei restritiva contém a um só tempo, (a) uma norma de garantia, que reconhece e garante determinado âmbito de proteção – união estável como entidade familiar – e (b) uma norma de autorização de restrições, que permite ao legislador estabelecer limites ao âmbito de proteção constitucionalmente assegurado” … ”não raras as vezes, destinam as normas legais a completar, densififcar e concretizar direito fundamental” (ob.cit. p. 331).
É, permissa vênia, a hipótese do caso concreto.
2º) O CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO.
Como afirmado, o Código Civil Brasileiro consolidou a leis relativas à União Estável, razão pela qual “estamos diante de um negócio jurídico que visa definir a disciplina da vida em comum e a formação da família por meio da união estável. Como em qualquer outro negócio jurídico, exige–se para a validade do pacto de convivência a presença dos requisitos essenciais: capacidade das partes, objeto lícito, possível e determinado, ou determinável e forma prescrita ou não defesa em lei.” ( cfr. Luiz Guilherme Loureiro, ob. cit. p. 1162).
Por outro lado, dispõe o art. 1.641, inciso II, CCB⁄02 (norma equivalente ao art. 258, II, CCB⁄16), uma regra de índole restritiva, qual seja que o regime de separação total de bens para o maior de sessenta anos de idade, pouco importando seja pelo instituto do casamento, seja pelo da união estável.
Incide, sem exceção, sobre a criação de uma entidade familiar.
Por isso mesmo, a vejo como uma regra de abrangência geral e, assim, de imposição legal àqueles que se casam na abrangência de seus pressupostos, dos seus limites, sem nenhuma exceção.
Se essa regra não foi excepcionada não se lhe pode negar efeito quando presente o seu pressuposto material, ou seja, a idade de sessenta anos.
Essa seria a restrição legal, protetiva ao idoso.
A flexibilização dessa norma estaria na vontade das partes em elaborarem um pacto antenupcial, inexistente no caso concreto, haveria então apenas a determinação legal, respeitada a vontade e assegurado o direito à herança.
A interpretação protetiva por extensão e construção jurisprudencial que se deu à união estável, vai além daquela concedida ao casamento, o que, penso, é inaceitável porque contrária à norma expressada no art. 1641, II, violadora do princípio geral de reserva legal, art. 5º, II, CF – certo de que essa norma não contém qualquer ressalva de exceção quanto à sua incidência, pois “… a interpretação de qualquer norma jurídica é uma atividade intelectual que tem por finalidade precípua – estabelecendo o seu sentido – tornar possível a aplicação de enunciados normativos, necessariamente abstratos e gerais, a situações da vida, naturalmente particulares e concretas” (p. 77).
De igual sorte, os conviventes poderiam ajustar na manifestação da vontade – pacto de convivência – de constituírem uma entidade familiar, as normas de natureza financeira ou de natureza econômica, do patrimônio, como por exemplo, nas escrituras públicas de reconhecimento de convivência em união estável, ou mesmo de um contrato, desde que escrito.
Acerca desse tema, preleciona LUIZ GUILHERME LOUREIRO, litteris:
“Conforme foi visto, os companheiros podem optar por outros regimes patrimoniais para disciplinar a vida comum, seja um regime típico, seja um regime atípico. Nesse caso, É OBRIGATÓRIA A CONVENÇÃO E CONTRATO ESCRITO. A norma do art. 1725 nada estabelece sobre a forma de contrato. Assim prevalece o disposto no art. 107 do CC, segundo o qual: “a validade da declaração de vontade não dependerá de forma especial, senão quando a lei expressamente a exigir”. Concluindo, o instrumento público não é da substância desse contrato, que pode ser concluído por instrumento particular”. (Curso Completo de Direito Civil, Editora Método, 2009, p. 1161).
Não exercido esse direito, sobrevive a regra geral do art. 1.641, II, do Código Civil Brasileiro de 2002 (norma equivalente ao art. 258, II, CCB⁄16), de conteúdo geral, cogente, e sem exceção.
Nesse sentido:
- “CASAMENTO. REGIME DE BENS. PACTO ANTENUPCIAL ESTABELECENDO O REGIME DA COMUNHÃO UNIVERSAL. MULHER COM MAIS DE CINQÜENTA ANOS. INADMISSIBILIDADE. ARTS. 257, II, E 258, PARÁGRAFO ÚNICO, II, DO CÓDIGO CIVIL. – A norma do art. 258, parágrafo único, II, do Código Civil, possui caráter cogente. É nulo e ineficaz o pacto antenupcial firmado por mulher com mais de cinqüenta anos, estabelecendo como regime de bens o da comunhão universal.Recurso especial conhecido e provido.” (REsp 102.059⁄SP, Rel. Ministro BARROS MONTEIRO, QUARTA TURMA, julgado em 28⁄05⁄2002, DJ 23⁄09⁄2002 p. 366).
Registro, que não se está aqui a sustentar o afastamento do(a) companheiro (a) à sucessão hereditária, porque nula seria tal ajuste a teor do art. 426, do CC, conhecida desde tempos imemoriais como PACTA CORVINA.
Se está a consignar que ante a ausência de disciplina do regime jurídico na união estável, havendo o companheiro sessenta ou mais anos de idade, o regime é o da separação absoluta porque o dispositivo legal não excepcionou a sua aplicação.
Aos companheiros com idade inferior a 60 anos, há de prevalecer “… meação dos bens adquiridos durante a união estável, desde que comprovado, em ação própria, o esforço comum”, como afirmou o em. Ministro Relator.
Ao Judiciário não é permitido legislar.
À hermenêutica da interpretação não cabe criar direito não previsto na lei.
Não se deve dar maior proteção à união estável do que ao casamento. Ambos institutos são titulares de direitos, mas também hão de sofrer as limitações igualmente.
Com efeito, se o art. 1.641, II, do CCB⁄02, disciplina que no casamento dos homens de idade igual ou superior a sessenta anos é o da separação absoluta, não há como compreender que esse princípio não seja aplicado à união estável, uma outra forma de instituição do núcleo familiar.
Finalmente, entendo como inaplicável à hipótese do caso concreto os fundamentos do enunciado da Súmula 377 do Excelso Supremo Tribunal Federal, porque não se trata de separação legal de bens, mas de direito que o maior de sessenta anos de idade tem, como regra absoluta ⁄ cogente, para o casamento a separação total de bens, princípio esse que alcança também, sem dúvida, a união estável pois o princípio – mens legis – é a proteção ao idoso.
Com esses fundamentos, acompanho o relator na tese de extensão do regime de separação prevista do art. 258, II, do CC⁄16 (art. 1.641, II, CCB⁄02) à união estável aos conviventes maiores de (60) sessenta anos, mas, divirjo quanto a exigência de esforço comum dos bens adquiridos na constância do relacionamento, por ausência de amparo legal e constitucional, sendo inaplicável a Súmula 377–STF às relações de união estável.
Em resumo, dou provimento ao recurso especial em maior extensão para definir como incomunicáveis os bens adquiridos na constância do relacionamento do casal.
É como voto.
Ver integra do acordão abaixo